sexta-feira, 27 de abril de 2012

AUGUSTO DOS ANJOS (Se tiveres oportunidade, escute estes poemas na voz de OTHON BASTOS).

O Vencedor (Augusto dos Anjos)

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Histórias de trabalho "Semeando sonhos"

Concurso HISTÓRIAS DE TRABALHO, 18ª edição, Porto Alegre/RS, 2011.Secretaria Municipal da Cultura, Coordenação do Livro e Literatura.


SEMEANDO SONHOS (2)

HISTÓRIAS VERDADEIRAS

Existia nela algo de indecifrável. Talvez o jeito de gritar com a gente, metade em alemão, metade em português. Aquele modo natural de falar aos berros. Andava ao redor da mesa, secando as mãos no avental de saco, sobre aquela barriga grávida, sempre começando uma nova vida. Sua resistência parecia vir da alma mesmo quando, no final de uma gravidez ou recém tendo parido, subia as ladeiras, por entre os pomares, carregando duas latas d’água. O cabelo era comprido e sem formas, como o corpo, depois de tantos filhos. Filhos que enchiam uma grande mesa em volta da qual ela corrigia os cadernos, depois das tarefas diárias. Gritava com a gente e batia com os dedos grossos nas folhas: “_Tá feio! Tá horrível! Apaga e faz de novo!”. A gente, sem erguer os olhos, obedecia. Ela sabia mandar e corrigia temas como ninguém! Nossos cadernos de aula eram sempre elogiados. Ela nos fazia ler, em voz alta, todas as noites, para que nosso pai pudesse ouvir.

Pertencíamos ao grupo dos alunos mais carentes e, por isso, usávamos sempre material doado. Nossos cadernos de doze folhas precisavam ser economizados. Primeiro fazer os temas na mesa limpa, depois jantar, para não deixar os trabalhos manchados da banha da carne de porco. E, quando nesses cadernos apareciam “orelhas”, ela nos obrigava a colocá-los em baixo do pé da mesa, e berrava: “_Onde se viu um livro de estudo todo ‘orelhado’?”. Ela possuía uma forma muito especial de estabelecer as margens, os limites. Não parecia haver nela a doação do conhecimento. Nunca entendíamos o motivo pelo qual ela exigia tanto de nós.

A escola também nos fornecia os uniformes. A rotina antes da aula era severa. Banhos de bacia, esfregando o corpo com bucha e sabão amarelo, feito em casa. Unhas aparadas. Cabelos penteados, com tranças e enormes laços de fitas. E as orelhas? “_Deixa ver as orelhas... e a outra?”. Saia no comprimento exato, quatro dedos acima do joelho, camisa branca, gravata, meias e escabrosos sapatos pretos. Aliás, nós três dividíamos dois pares de sapatos. Então, ou eu andava com os pés apertados nos sapatos da minha irmã ou, perdendo os ditos cujos, quando usava os do meu irmão mais velho. Preferia andar com os dedos apertados, já que minha irmã, querendo parecer mocinha, conservava os seus mais limpos. Meu irmão, mais medonho e relaxado, jogava bola na escola...

Nossas merendas eram sempre feitas em casa: batata-doce, aipim frito, polenta feita com farinha de milho grossa (que vinha no rancho do Posto de Saúde). E quando a situação estava equilibrada, até comíamos polenta com farinha média e guisado. Mas, dávamos um jeito de contornar a situação e trocávamos os lanches com as professoras. Elas almoçavam nossas merendas e nós, maravilhados, comíamos aquelas bolachas recheadas, que novidade! Imagine se ela descobrisse que a gente andava comendo ‘aquelas porcarias’. Estudávamos no horário intermediário, saíamos de casa uma hora antes, atravessando matos de eucaliptos, cruzando arroios e plantações, até chegarmos à primeira estrada de terra vermelha. Somente podíamos ir à escola naquele horário. Pela manhã e no final da tarde, ela precisava de todos os filhos em casa, para ajudar nas lidas com a lavoura. Nos invernos, a escola sempre solicitava auxílio para a sopa. Ela mandava de tudo o que nossa horta pudesse produzir. Enchia as cestas e levava de carreta, puxada por uma parelha de bois. Nesses dias, a gente não entendia se o sentimento que tínhamos por ela era orgulho ou vergonha.

Nas festas da escola, sempre éramos elogiados. Ela caprichava nos bolos, assados no forno à lenha, no pátio. Fazia cucas recheadas de frutas, o que nos levava a vencer sempre os concursos de culinária. Na Semana da Independência, em setembro, sempre desfilávamos no ‘Pelotão dos Imigrantes’. Ela nos arrumava com roupas verdes, camisas brancas, de suspensórios e arranjos de flores nos cabelos. Ela enfeitava cestas, com rosas, botões de copos de leite e flores do campo, que distribuíamos aos jurados. Na sua simplicidade, ela nos fazia sentir importantes.

E tinham as campanhas de vacinação. Carroça de passeio, cavalo domado, boas ferraduras, bancos recobertos com os pelegos mais branquinhos. Lá ia ela com seu amontoado de filhos e muitos cartões de vacinas. Cada um deveria ter o seu, de cor diferente dos demais. Ninguém podia ficar sem fazer nenhuma e os cartões eram devidamente guardados no ‘Livro dos Documentos’. Esse livro continha, em cada uma de suas páginas, um segredo guardado. E ela sabia onde estava cada um deles. Era abrir o livro e retirar o que desejava. A Bíblia, de capa de couro preto e letras douradas, guardava os mistérios e os desejos de nossa família. Era o tesouro dela.

E todas as noites, fazer os temas. Ela ficava de pé, próxima à mesa e coordenava as atividades. Conferia um a um os cadernos e mandava refazer as letras feias e nos tomava a tabuada, oralmente. Dos seis filhos que ela educou apenas um concluiu o ensino médio. Os outros cinco, por descaminhos da vida, por força de sobrevivência ou pelo peso da enxada, abandonaram a escola.

A vida seguiu seu curso. Vieram os netos. E lá estava ela, de novo, para ajudar a fazer as lições. Eles em geral recusavam ajuda, pois julgavam ser ela muito brava e exigente. Mas um deles, talvez por ser filho único e ficar só em casa, aceitou seu auxílio antes mesmo de ser matriculado. E aqui a vida se reiniciava. Ela agora, mais velha e experiente, ensinava a segurar o lápis entre os pequenos dedinhos e redesenhava as letras de uma velha cartilha escolar. O menino, calmo e interessado, seguia sua trilha de ensinamentos. Ela o ensinou a escrever em linha reta, ‘_Fazer a coisa direito’. Ele aprendeu a recortar e colar. Depois, na aula, seu caderno era sempre o mais completo, o mais limpo e o mais elogiado. E, quando não havia papel crepom, de veludo, ou qualquer outro material para fazer o tema de casa, ela o ensinava a usar feijão, arroz, milho, o que houvesse ou fosse necessário. E, mesmo com os dedos retorcidos pelo reumatismo da vida, ela ainda o ensinou a fazer bolinhas de papel para preencher algum Coelho de Páscoa ou Papai Noel. Ela lhe orientou a fazer de barro uma oca que, colocada sobre uma tábua, ajudava a compor uma aldeia, com folhas verdes e pedaços de madeira. O neto tirou dez no trabalho sobre o Dia do Índio.

No caderno de caligrafia, ensinava o neto a escrever o nome e sobrenome. E, quando iam fazer compras no mercado, o neto escrevia a lista das compras. Ela, apenas conferia. Era bom para ele, com sete anos, ir praticando. Assim, ia aprendendo a ‘desenhar as letras bem direitinho’. Sempre altiva, ela levava o menino para tomar as vacinas, agora num posto de saúde mais distante. Tinham que ir de ônibus. Ela mandava que ele ficasse lendo as placas indicativas dos bairros em todo ônibus que passava. Era bom praticar a leitura. E, à noite, em casa, faziam juntos os temas. Depois, ela pedia que ele escrevesse os nomes dos bairros. Era bom para exercitar a memória.

Ela exigia. Ele atendia a seus pedidos e caprichava nos escritos e nas leituras. Nas noites de inverno, os temas eram feitos em frente ao fogão à lenha e, usando as sobras dos papéis da escola, desenhavam usando carvão como giz. Era interessante o contraste: a febre da infância e a firmeza da sabedoria.

E foi justo em setembro, num dia de sol claro e céu azul, que ela nos deixou. Escolheu um lindo cenário para seu ultimo desfile. Carregamo-la até seu lugar derradeiro, unidos. Compramos-lhe flores do campo. Ela ensinou a todos nós a importância do conhecimento, o verdadeiro valor do saber. De dia, espalhávamos sementes na terra. À noite, ela semeava sonhos em nós. Meu filho, só depois de algum tempo, se deu conta do que eu já havia percebido, mas que agora não tinha mais relevância nenhuma. Ela nunca corrigiu, de fato, nenhum caderno. Nunca escreveu um bilhete ou uma carta de amor. Nunca assinou seu nome. Ela, minha mãe, era analfabeta.

PARA O CONCURSO HISTÓRIAS DE TRABALHO/PMPOA.

Crônica "A mala" -

A MALA Eleana Margarete Roloff

Seu primeiro contato com aquela escola foi, sem dúvida, muito especial. Já tinham estado lá ela, a professora e as colegas, num sábado, mas o prédio estava fechado. Na manhã fria e chuvosa do dia 30 de agosto, quando desembarcou do ônibus e subiu em direção àquele beco, não teve medo de nada. Foi puxando sua mala ladeira acima, dando bom dia e perguntando onde ficava o colégio. Escalava mais um pedaço, encontrava outra pessoa e perguntava novamente. Não que já não soubesse. Estes “bons dias” eram uma espécie de apresentação. Queria deixar evidente aos que encontrasse pelo caminho quem era e o que iria fazer ali. Não teve problemas. Todos lhe receberam muito bem. O inesperado aconteceu quando pediu informações a algumas meninas que, carregando materiais escolares, pareciam ir estudar. Deu bom dia e indagou. Elas olharam desconfiadas e, num gesto único, quase que combinado, subiram a calçada em silêncio e andaram em direção a um bar que já estava aberto naquele alvorecer. Percebeu que não iriam comprar nada. Estavam fugindo de uma mulher estranha, que trazia uma mala e fazia perguntas, acostumadas que são de passar a infância tentando se proteger do mundo.

Encontrou o prédio onde ficava a escola. Mães e filhos aguardavam parados da rua. Foi experimentando o olhar receoso de cada um, enquanto se dirigia à porta mais movimentada. Por detrás das grades uma senhora orientava a entrada. Enquanto dizia quem era e o que tinha vindo fazer ali, foi cercada por crianças que esperavam o horário. Tinham entre três ou quatro anos, todas usavam roupas simples, limpinhas e penteadas. Uma professora estava recebendo os pequenos. A pessoa da portaria a conduziu. Começaram a subir escadas dobrando à direita, à esquerda, à direita, à esquerda... Sua imaginação voou: parecia o labirinto do Minotauro! Mas esta impressão anulou-se na medida em que, ao andar pelos estreitos caminhos, descobria um mundo novo, trancado entre paredes. Tudo estava limpo e organizado, cubículos serviam de salas para as mais variadas funções. Placas nas portas indicavam o que se fazia ali. Muitas pessoas já trabalhavam e ainda não eram oito horas da manhã.

Foi apresentada a sua turma e a aula transcorreu normalmente. Ao sair, descendo os múltiplos degraus com sua bagagem, encontrou uma menina de miúdo olhar, que perguntou: “Sôra, o que tem na mala?” Parou e refletiu antes de responder. Sonhos, meu anjo, são sonhos... “, mas não são livros?” São livros que transportam sonhos, respondeu. Sorriu e continuou. Antes de chegar à porta, ouviu a última pergunta: “Sôra, me deixa sonhar contigo?”

*Aluna do 8º semestre/ Letras, PUCRS. Agente Educacional II - Interação com o Educando.

Poesia no ensino fundamental - A casa - Vinícius de Moraes

A Casa

Vinicius de Moraes

Era uma casa muito engraçada

Não tinha teto, não tinha nada

Ninguém podia entrar nela, não

Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede

Porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer pipi

Porque penico não tinha ali

Mas era feita com muito esmero

na rua dos bobos numero zero

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Venha ver o por do sol - Lygia Fagundes Telles

Venha ver o pôr-do-sol (1)

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. - Minha querida Raquel. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. - Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância... Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete- léguas, lembra? - Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? - Podia ter escolhido outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério? Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. - Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. - Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada. - Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério... Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. - Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura. - E você acha que eu iria? - Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento – Você fez bem em vir. - Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar? - Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. - Mas eu pago. - Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava. - Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida. - Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério

Venha ver o por do sol (2)

abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. - É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. - Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo... O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. - É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega - Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa. - Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão. - Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. - Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro... Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram - Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã... Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano. - É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade. .Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. - Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora. - Mais alguns passos... - Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. - A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá

Venha ver o por do sol (3)

que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. - Sua prima também?- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. - Vocês se amaram? - Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. – Enfim não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o. - Eu gostei de você, Ricardo.- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. - Esfriou, não? Vamos embora. - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. - Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico. - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - E lá embaixo? - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. - Todas estas gavetas estão cheias?- Cheias?...- Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - Vamos, Ricardo, vamos . - Você está com medo?- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foram umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. .Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.- Que frio que faz

Venha ver o por do sol (4)

aqui. E que escuro, não estou enxergando... Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos. - Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. - Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. - Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. - Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida! - Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola. - Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. - Boa noite, Raquel. - Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas. - Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. - Não... Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano: - NÃO! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.


TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios; ficções. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. P.203-212.